quinta-feira, 27 de novembro de 2008

IGREJA

Às terças, quintas e domingos as noites sobrepesavam mais que sombras. Os demais dias da semana são de alívio fino e leve. Naqueles dias ela vai com vagar para o banheiro; lenta, a ducha perdura séculos como conforto sobre o corpo nu. O sabonete que serve a todos. A escova sobre as unhas, outra escova sobre os dentes. A toalha úmida de outros banhos em horas outras do dia. No quarto apanha a roupa em espera sobre a cama, cuidadosamente engomada. Os cuidados maternos eram exatos, e para toda a família, mesmo diz o que vestir ou melhor não: sabe dimensionar o uso de acordo com o valor da noite, variar o repertório dos guarda-roupas nem tão pobre, e jamais rico. Veste a roupa, de linho, sobre o corpo enxuto. À fragrância da pele limpa acrescenta o frescor da mão embebida no perfume, um creme, uma hesitação. Calça os sapatos, penteia descuidadosamente os cabelos, sempre penteia os cabelos com pressa. Já está arrumada. Vai para a sala, esperar a hora certa e todos prontos, assentada ao sofá. Antes acende a lâmpada. A sala limpa como o corpo. Os carpetes sem pó, as paredes brancas com quadros baratos, as samambaias pendentes respondem à viração que devagar se expande pelo entardecer, lá fora, e atravessa as janelas abertas. Não muito depois, o blaser bege com a saia preta e os saltos médios com a bolsa de zíper. A gravata vermelha e o terno preto com o colarinho rosado. Relógios novos, firmes nos pulsos. Os sapatos de couro vêm pelo corredor; firmes sobre o assoalho, e fazem uma passar diverso dos passos arrastados dos chinelos. E, por último, o menino com os cabelos molhados, penteados para o lado, ainda por pingar algumas últimas gotas vivas. Na parede menor o chaveiro de madeira e ganchos enferrujados, resistente desde os anos sessenta, é desprovido do molho de chaves da casa e do automóvel. A estante fica sem as bíblias e hinários. É inevitável: apertar os dentes e sair com todos. Através do vidro do carro vai perdendo olhares, calada. Cobiça as pessoas despreocupadas, as árvores fixadas nas calçadas que, apesar de imóveis, vão embora da paisagem. Os gradeados de jardim e as fachadas das casas – dos quais ninguém nunca exige mais do que possam dar. E também, e tudo, passam. E pessoas vão, inocentes do poder e privilégios que têm, andando em sentido contrário, e tão bem vão que é irresistível não voltear a cabeça por sobre os ombros e inutilmente retê-las com o olhar quase desesperado em tão avançada contagem regressiva, vendo-as desaparecer de perspectiva através das lentes lúcidas do pára-brisa, puxadas pela distância. A velocidade do carro reduzindo... não para um sinal vermelho do trânsito nem para uma lombada, mas, meu Deus!, para localizar uma vaga e estacionar! Desce, com olhar baixo e coração aflito, invejando as pedras presas na massa asfáltica – não interessa o que ser – nada que fosse, portanto. Pode ser, desta e de outras vezes, um atraso de minutos que interpele a leitura da Palavra e, por respeito, esperar, à porta do templo, que termine. Diante de uma porta como diante do portal do Céu. Iras faiscantes no claro calmo e eterno, podendo, se tocá-la, mortal e mais. E sabe a si inadequada e indevida. Uma dúzia de anos vividos e as mãos levemente tremem e suam porque, apesar do corpo limpo e perfumado, sabe que sua alma cheira mal, gruda e apresenta-se encardida – de transgressões mal arrependidas e reincidentes. Na porta errada.

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